domingo, 23 de julho de 2023

MINHA INFÂNCIA EM CATAGUASES (anos 1930/40) - Por Roberto Braz Iannini


“Andávamos de bicicleta alugada, velhissima, marca Phillips, rezando para que aquela meia hora não passasse nunca, e enquanto pedalávamos nos sentíamos os donos do mundo e da vida. 

Soltávamos papagaios nas ruas de Cataguases, sentindo a indescritível pressão do vento que puxava a linha, enquanto eles rodopiavam no ar.

Brincávamos sob as luzes amareladas dos postes e catávamos todas as variedades de besouros - pretos, marrons, esverdeados, de asas lisas ou rajadas, de todos os tamanhos e diversos tipos de choros, sem chifres, com 1 chifre, com três chifres (dois grandes laterais e um pequeno ao centro e os fechávamos em fortes caixas de sabonete, para nós de segurança máxima, para desespero de minha mãe que devia varrê-los espalhados pela casa lá pelas 3 da manhã.

Olhávamos da janela a ventania empurrando, rua a fora, a poeira e folhas antes das tempestades. 

Das janelas fitávamos, cismando,
a chuva fina que caía sem parar durante dias a fio, fenômeno que hoje não mais existe. 

Rodávamos pneus com um furo só, que ao cabo de anos terminou esquecido num canto com três grandes furos... Rodávamos àrcos, (rodas de ferro empurradas com um arame grosso com a extremidade em gancho), com a gana de quem está se divertindo sem saber que o mundo existia ao redor. 

Púnhamos pregos na linha do trem esperando que passasse e depois íamos pegá-los, achatados como uma minúscula espada artística, quentes pela repentina deformação. Púnhamos pedrinhas na linha para vê-las esfarinhar-se e até, um dia, movidos pelo medo de causar um desastre, retiramos uma pedra enorme segundos antes de o trem passar.

Viamos o retrato do Getúlio em casas comerciais e nas escolas, com uma fitinha verde-amarela, que usávamos em nossas lapelas.

Andávamos de pés no chão fugindo do calçamento de pedra em brasa.

Acompanhávamos as bandeiras do Brasil carregadas pelas meninas da Escola Normal onde o povo depositava panelas e peças de alumínio, que eram enviadas ao exterior para fabricar armas na guerra de 39. 

Contemplávamos a montanha de ferro velho ajuntada no final de avenida, que ia para fabricação de canhões. 

Alguns privilegiados escutamos no rádio, ao entardecer, a voz gaúcha e metálica de Getúlio, puxando o "L”: "O Brasil declara guerra à Alemanha".

Cantávamos todos os dias o Hino Nacional e canções patrióticas no grande pátio central do grupo escolar Astolfo Dutra, ao som do piano.

Mais que qualquer lembrança, na avenida Astolfo Dutra, de rua dupla dividida naquela época por um córrego, florida de amarelo das acácias, vimos passar um trem repleto de jovens recrutas, todos cantarolando e batucando com as mãos para fora das janelas no vagão de madeira... 

Não sei quantos voltaram, nem tive notícia do meu vizinho que treinava tiro em latinhas jogadas na rua e pedia para vermos se ele tinha furado - o mesmo que um dia mirou na minha cabeça enquanto eu brincava no muro que dividia nossas casas, e me deixou na hora e na memória uma desagradável sensação (que estaria ele imaginando no momento, a figura de um inimigo?)

Víamos meninos com estilinque matando passarinhos, que caíam sangrando no chão, coisa que hoje felizmente não mais se faz.

Assistiamos na praça Santa Rita, ao lado direito da Matriz, os filmes projetados em uma grande tela armada na carroceria de um caminhão - diversão festiva, Popeye para todo o povo, com aquele som meio rouco e metálico dos alto-falantes de 1940. 

Ganhávamos muitas vezes no Grupo Escolar pequenos tubos amarelos de “dentifrício" Kolinos. Com frequência fazíamos longas filas na escola para receber vacina, que causavam feridas purulentas que iriam deixar grandes marcas arredondadas nos braços, mas nos salvaram das doenças. Entravam em nossas casas os mata-mosquitos, uniformizados e munidos de uma lanterna, para nós mágica porque não eram vendidas no comércio, examinanado, com um pose aristocrática, as caixas d'água e todos os cantos do quintal para descobrir focos de larvas. 

Havia perto de uma farmácia na avenida um enorme letreiro (hoje se chamaria “out-door"), em que um rapaz fazia propaganda de um remédio, com revólver em punho, mirando em uma grande lombriga, com a frase “AO TIRO CERTO!" que era o nome do remédio..

Sobretudo, uma lembrança de algo que não é mais contado hoje. Eram convocados comícios na praça Rui Barbosa, onde inflamadíssimos oradores incitavam o povo a apedrejar as casas dos "quinta-colunas" (italianos, alemães e japoneses) que, indefesos, viam destruídas suas empresas, como a do Foto Iannini, de meu tio, cujo letreiro luminoso, de cor leitosa, coisa fina na época, foi apedrejado, junto com o laboratório. 

Soube anos depois que a multidão foi afastada da casa do meu pai por um homem que cercou a rua e disse: “Aqui na casa do Sr. José Iannini ninguém toca, porque é um homem bom". (Meu pai era fervoroso presidente dos Vicentinos, muito atuantes desde aqueles tempos). E a multidão, uns cem metros antes, se desviou subindo a rua em direcão à Praça Santa Rita.

Ficou no esquecimento da História do Brasil esta barbaridade bélica, da qual é curioso resgatar o acontecido em Ponte Nova (MG) no armazém "Leão da Avenida" de meu tio Mazzeo. O Pe. Alcides Lanna, figura lendária de sua época, homenzarrão destemido, subiu num banquinho e, abraçando a placa, gritou: "Aqui ninguém toca". 
Alguém da multidão respondeu: “O senhor também é Quinta- coluna, nasceu na Silésia"
Mas o padre, inconfundivel mineirão da roça, respondeu: “Eu sou salesiano, não sou da Silésia, nasci em Santo Antônio do Grama" (vilarejo perto). 
Ninguém reagiu e a multidão, de pedras na
mão, tomou outro rumo.

Mas sobretudo é bom relembrar o dia primeiro de ano. em que a banda desfilava de alvíssimo uniforme branco, com cintilantes instrumentos sob o primeiro sol da manhã, marchando sobre os paralelepípedos novos em que se refletiam minúsculos raios do astro-rei.

Será que a geração do Mac Donald's, enclausurada nas casas e escolas vai ter tais lembranças? Pode ser que não, mas terá outras igualmente caras, pois o mundo gira mas as recordações da infância sobrepujam a velocidade dos tempos. “

MINHA INFÂNCIA EM CATAGUASES
Por Roberto Braz Iannini (1933 - 2018)

Agradecimentos: Isabella Versiani (que resgatou a carta original que fora enviada por meu saudoso pai, autor da carta, ao pai dela, Sr. Olegário Versiani, falecido em 2023)
Foto: Observatório Geográfico da América Latina