sábado, 31 de outubro de 2015

Juiz realiza inspeção judicial em buraco onde homem vive há 25 anos

Cavar buracos e morar dentro deles faz parte da vida de Antônio Francisco Calado, 57, há 25 anos. E por viver assim, o homem chama a atenção dos 3,5 mil moradores da pequena cidade de Nova Roma, distrito judiciário da comarca de Iaciara e distante 517 quilômetros de Goiânia. A história do “homem do buraco” despertou também o interesse do juiz Everton Pereira Santos. Ao analisar o processo de Antônio, logo determinou uma inspeção judicial no local, com o objetivo de constatar não somente a sua incapacidade, mas principalmente suas condições de vida.

Para chegar à “casa” de seu Antônio, a viagem foi longa e o juiz precisou da ajuda de Raimunda Tereza Calado, irmã dele. A equipe que
acompanhou o magistrado saiu do fórum de Iaciara no final da tarde e só duas horas depois, às 18h30, encontrou seu Antônio. Foram 50 quilômetros de asfalto até chegar em Nova Roma, mais 30 de estrada de chão e quase um quilômetro a pé até o buraco.

O horário foi proposital. Segundo a irmã, Antônio sai do buraco todos os dias bem cedo e só retorna no fim da tarde. Calmo, com panos que usa como roupa e carregando preso ao corpo objetos como facão, faca, punhal, isqueiro e um artefato para acender fogo, ele recebeu os visitantes enquanto misturava a comida, que lhe serviria como jantar: arroz mal cozido, molho de pimenta com poucas verduras, tudo preparado por ele. "Não vou oferecer, vocês não vão querer porque eu não lavo a panela tem uns 10 anos", revelou. O alimento foi dividido com uma raposa que ele pegou no mato e que lhe faz companhia. “Tem também esse aí, o Barão”, disse, apontando para o cachorro. Os animais são os únicos companheiros dele.
As frases desconexas não permitiram uma conversa longa entre o magistrado e o homem do buraco. Ao ser questionado sobre a sua mãe, que morreu em 2012, ele respondeu: “Ela não foi embora, de vez em quando falo com ela, todos dias”, disse, confuso. “O trovão e o raio também dizem o que eu devo fazer”, acrescentou.
Em alguns momentos, ele demonstrava ter conhecimentos de como utilizar o fogo e sobre armas para caça. Respondendo somente o que lhe era perguntado, afirmou que não tem medo de o buraco desabar sobre ele porque tem plástico e madeira que protegem o local. Antônio apresentou a “casa”. Na entrada, um oratório com pequenas imagens que ele afirmou serem seus irmãos; depois um lugar para guardar ferramentas. Havia ainda uma espécie de antessala com uma rede pendurada, e, por fim, uma base de madeira com panos velhos por cima, que lhe servia de cama. “A minha televisão é aqui em cima”, mostrou. A “televisão” era um pequeno furo de ventilação no teto da caverna, por onde ele, deitado, consegue ver o céu e as estrelas.

As técnicas usadas por ele para construção do buraco e a produção de desenhos em relevo esculpidos fora e na parede do local chamaram a atenção. De acordo com ele, alguns animais são frequentadores da caverna. “As abelhas e formigas vêm me visitar. Elas também não gostam de luz”, contou.
Cerca de 50 minutos depois, na despedida, foi generoso com o sorriso e agradeceu a visita. Disse que não sabia o que estava acontecendo e que
 era feliz. Ao ser questionado se precisaria de algo, foi enfático. “Sou feliz aqui. Não preciso de nada. Sou feliz com os animais. Eu durmo com eles”, destacou, antes de, mais uma vez, a conversa ser interrompida pelo “relâmpago” que estava falando algo para ele. “Ele me fala as coisas que eu preciso fazer”, completou.

Na cidade, as pessoas conhecem Antônio como o “homem do buraco”, “o homem do mato” e muitas delas não entendem o porquê de ele ter essa vida. Esta pergunta não foi respondida por ele, nem pela irmã, única pessoa que cuida dele. “Mas ele não faz mal para ninguém. As pessoas não precisam ter medo dele”, disse Raimunda.
O medo, realmente, é infundado e isso fica claro quando se fala com ele. Sujo e com um cheiro forte, Antônio é calmo e tranquilo. Segundo a irmã, ele não toma banho, não faz a barba e muito menos corta as unhas. “Já tentamos dar banho nele, mas ele não quer. Diz que os animais não tomam banho e ele também não”, contou. Ela disse ainda que a água que ele toma é de um rio que passa no fundo da fazenda. “Ele não aceita nada que a gente dá para ele. E também não come carne, só salame.”
Esquizofrenia Paranoide
A irmã dele contou que desde 1990 Antônio vive nessas condições. Segundo ela, várias tentativas para mudar a vida do irmão foram feitas. Porém, todas frustradas. “No começo, ficamos sem entender. Depois, ficou confirmado que ele é doente”, disse.

O laudo médico anexado aos autos atestou que Antônio tem esquizofrenia paranoide, uma perturbação mental grave caracterizada pela perda de contato com a realidade (psicose), alucinações e delírios (crenças falsas). No caso de Antônio, percebe-se que existe uma lógica perfeita dentro do delírio, só que ela não corresponde à realidade.
“Periciado tem déficit cognitivo e desorientação mental com alienação mental sendo incapaz para a vida independente e para o labor”, constatou a avaliação do médico perito. O laudo pericial foi realizado uma semana antes da data da audiência e na porta do fórum. “Tive que buscá-lo e prometer que o levaria de volta. Ele não saia de lá há mais de ano”, frisou Raimunda, irmã dele. “A vida dele é isso aqui. Ele não aceita nada e diz que não precisa de nada. Sabemos que é doente e que precisa se tratar”, destacou a irmã.
Benefícios previdenciários

Com o sol se pondo, a equipe deixou o local e chegou à comarca de Iaciara, às 21 horas. A experiência deixou o magistrado intrigado. “É diferente de tudo que a gente já viu. Ali é o mundo dele. Ser juiz é isso”, desabafou. No outro dia, Everton Pereira, além de instruir e julgar a ação de interdição de Antônio, sentenciou os processos de pensão por morte dos pais dele, por ele ter sido considerado incapaz.

“O autor se isolou no meio da mata, abdicando de cuidados higiênicos, morando num buraco por ele construído, criando animais e com alimentação precária. A inspeção judicial reforçou a incapacidade já atestada no laudo médico pericial”, destacou o juiz. Com isso, Antônio receberá a pensão do pai e da mãe. No entendimento do juiz, “é possível a cumulação de pensões por morte em decorrência do falecimento de ambos os genitores do filho menor ou maior e inválido”.
Ainda de acordo com ele, não há vedação à percepção conjunta em decorrência do óbito de ambos os genitores. “Portanto, do ponto de vista estritamente legal, mostra-se possível a concessão de ambas as pensões por morte”, reafirmou.
O advogado do caso, Eder César de Castro Martins, admitiu que o resultado positivo da sentença só foi possível devido à iniciativa do juiz. “O fato de ele ter ido ao local para conferir as informações fez com que Antônio recebesse o que lhe é de direito. Se isso não tivesse acontecido, ele não iria receber porque não ia sair da zona de conforto dele”, frisou.
Ainda de acordo com o advogado, se não fosse o mutirão, o processo demoraria de três a quatro anos para ser resolvido. “Antônio já teve seu problema solucionado. É uma iniciativa muito boa. O TJGO está de parabéns, levando Justiça aos lugares mais inusitados”, elogiou sorrindo.
Fonte: Texto: Arianne Lopes / Fotos: Aline Caetano - Centro de Comunicação Social do TJGO

2 comentários:

  1. Gostei da estória, Dr. Ianinni, muito bonito o resto deste juiz de diligenciar pessoalmente e conhecer a realidade no local. No fórum em que trabalho nunca vi um juiz fazer uma coisa desta.

    ResponderExcluir